Acontece.

Publicado por O Perfeito Idiota às 04:50

terça-feira, 21 de agosto de 2007


foram doze os passos que atravessaram aquela sala. estava na hora de acontecer. acabei de calçar as luvas já ajoelhado em cima da cama. o sono ofuscava àquela hora. um corpo jazia imutável. a voz de alguém, ecoava firme no ouvido obnubilado: -“reaniiimaçãooo”. o desfibrilhador. as drogas. o insuflador manual. o cansaço tolhia-me o pensamento. meio consciente da coreografia do algoritmo, activei o piloto automático. cortada a camisa de noite que vestia aquele corpo, examinei com admirada atenção os movimentos autónomos que os meus braços e mãos minuciosamente levaram a cabo. mesmo o sufoco tatuado nos olhares das colegas que nos cercavam numa estática ignorância fazia parte de um guião ensaiado, previamente. gel. pás. inicío de massagem cardíaca. adrenalina. atropinas. eléctrodos. catadupa de acções, como manda a ciência e suas evidências. todas geradoras de insucesso. nada pegou. “tem 87 brasas! já viveu muito, descanso à coitadinha…” – ouviu-se. o semáforo vermelho saiu de uma das bocas que permaceu nas tábuas durante os 45 minutos suados. pararam-se manobras! nada mais parou... o mundo continua inalterado. a não ser aquele coração, cansado de tanto bater. assistolia mantida e intransigente mesmo à minha frente. as luvas impotentes caíram instantes depois de ter cruzado a esquina da cama em trajectória distinta. ainda, senti o arrepio dos pulmões a expulsarem o último trago de ar. já a luz madrugadora rasgava os estores entreabertos, coada pelo vidro impermeável ao olhar curioso. a mão direita esmagava-me lentamente os poucos cabelos brancos. «nem sequer se despediu de ninguém» - pensei. Emocionei-me… que forma estranha de terminar uma vida inteira, revivida e sepultada numa cama nua e fria de um hospital? que fado do caraças! bem sei que com idade avançada ninguém os quer, não há vagar... mas não me conformo! passei o turno. e com ele, as memórias passadas de mais uma morte presenciada, não anunciada. a silhueta do corpo jazia agora envolvida no branco cadavérico do plástico. "nunca irei habituar-me" - temi. Acontece.
Boa? Boa!

1 comentários:

Alguém... disse...

É um prazer ler-te, muito bom mesmo!
Como te compreendo...forte abraço, keep walking and don't lose the faith!